terça-feira, 12 de maio de 2009

PAIXÃO POR UMA ÉGUA TERMINA EM MORTE

Edward de Souza

Ambrósia, pivô do crime

Nos anos 70, quando comecei minha carreira em jornal, fui enviado à editoria de polícia do Correio Metropolitano. Não tinha nem idéia das funções de um repórter policial, mas era a minha primeira oportunidade e não poderia deixá-la escapar. Naquela época, não sei se isso mudou, todo repórter começava pela área policial. Era o primeiro teste de fogo.
Logo nos primeiros dias notei que não era nada fácil a vida de repórter policial. Em meio a denúncias, investigações, acusações e até jogos de interesses, percebi que teria que manter controle e, na maioria das vezes, muito sangue frio. E, nesse ponto, era importante o repórter ter jogo de cintura, ou seja, saber lidar com quaisquer tipos de situações e pessoas. Isso era fundamental para realizar um bom trabalho nesta área. Até por que o movimento na editoria policial era e ainda é tão intenso quanto numa delegacia de polícia. A quantidade de ocorrências policiais sempre foi imensa.
Numa quarta-feira depois do almoço deixei o jornal com o carro de reportagem, dirigido pelo “Vicentão”, na companhia do fotógrafo Sergio Sakakibara, o “Serginho japonês”, amigo que perdi o contato, não sei por onde anda. Era rotina percorrermos os principais distritos policiais do ABC Paulista em busca de notícias. Mas aquele era um dia atípico. Nada tinha ocorrido de mais grave que merecesse destaque na página de polícia, pelos menos depois de passarmos pelos distritos das principais cidades do ABC, Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema. Voltar ao jornal de mãos abanando seria complicado, isso nunca havia ocorrido. Foi então que resolvi esticar nossa ronda e visitar as delegacias de Mauá e Ribeirão Pires. Nem poderia imaginar o que me esperava nessa última cidade. Entramos no 1º Distrito de Ribeirão Pires e cumprimentei o delegado de plantão, pedindo permissão a ele para ver as ocorrências policiais que haviam sido registradas. Olhei todos os boletins e nada havia que pudesse interessar. Já estava de saída quando uma mulher morena clara, cabelos compridos, invadiu o distrito aos berros, quase me derrubando em sua passagem. Gritava que não aguentava mais tanta humilhação e que desta feita a polícia teria que tomar providências antes que uma tragédia viesse a acontecer. Meu faro de repórter policial indicava que naquele mato tinha cachorro. Quase acertei... Era uma égua, o pivô de toda aquela confusão. Não se importando com a presença da Imprensa, pelo contrário, até gostando e pedindo para que sua denúncia fosse publicada, a jovem mulher, mais tarde identificada como Aparecida, contou a mim e ao escrivão Eurico que seu marido, conhecido como "Dico", lavrador, estava apaixonado por uma égua, que pertencia a sua vizinha. Claro, ninguém é de ferro e precisei segurar para não rir na frente dela. O delegado se levantou da cadeira e percebi que saiu para dar boas gargalhadas em outra sala. Enquanto isso, ar sério e compenetrado no que fazia, Eurico, o escrivão, redigia a ocorrência. Um verdadeiro artista, pensei comigo. Não esboçava nem um leve sorriso. Vez em quando torcia o nariz, mais nada. Aparecida deu detalhes surpreendentes. Revelou que por diversas vezes flagrou o marido transando com a égua. Chegou até a colocá-lo para fora de casa, mas "Dico" sempre voltava com pedidos de desculpas, prometendo encerrar seu relacionamento com o animal. Segundo a mulher, teve noites em que a égua - desolada com a separação - fugia do pasto e até empurrava a janela do quarto onde ela dormia, à procura do lavrador. Mas a revelação bombástica veio em seguida. Contou que naquela manhã havia surpreendido o marido, no pasto da vizinha, aos beijos com a égua. E tinha testemunhas que poderiam ser arroladas pela polícia, caso necessário. O boletim foi registrado, mas Eurico não sabia o título que dava à ele. Por determinação do delegado, acrescentou: “averiguação de zoofilia” - praticar sexo com animais - e encerrou a estranha ocorrência. O delegado prometeu para a mulher que iria intimar o lavrador. Disposta a prosseguir com sua denúncia, Aparecida concordou em nos levar ao pasto onde estava a égua. O jornalista, de qualquer área, tem o dever ético de investigar a veracidade dos dados que chegam ao jornal. Na área da polícia, porém, a reportagem requer muita precisão para não se publicar erros e precisar repará-los no dia seguinte. Quando chegamos, Aparecida chamou a vizinha, dona da égua. A mulher já saiu de casa nervosa e proferindo ameaças contra “Dico”, por causa do romance que o lavrador insistia em manter com seu animal de estimação. Descobrimos que a égua chamava-se “Ambrósia”. Era uma bela égua. Seu pêlo era totalmente marron e sua crina longa e macia, fato constatado pelo “Sérgio Japonês”, que acariciou a égua para acalmá-la e tirar umas fotos. Com a história e fotos, voltamos ao jornal e cumprimos nossa obrigação. No dia seguinte, estupefatos, os leitores viram a manchete: “lavrador se apaixona pela égua Ambrósia”. Não sobrou um só exemplar nas bancas. Dias seguidos acompanhamos o tórrido romance entre o lavrador e a égua “Ambrósia”, naquelas alturas conhecida em toda a região do ABC e em São Paulo. “Dico” foi expulso de casa, mas segundo testemunhas, todas as noites dormia no pasto ao lado de “Ambrósia”, aproveitando o repouso da dona do animal.
Dois meses depois dessa primeira matéria publicada, “Dico” foi encontrado morto próximo ao pasto onde ficava. Uma de suas orelhas havia sido arrancada. Jornais de São Paulo então se interessaram na história e o caso do romance do lavrador com a égua “Ambrósia ganhou divulgação nacional. Um deles, o extinto Diário da Noite, publicou em suas páginas uma foto da égua, cabisbaixa, com a seguinte legenda: “Ambrósia” chora a morte do seu grande amor”. Não foi dificil a polícia descobrir a mandante do crime, claro. Presa, Aparecida revelou que pagou certa quantia em dinheiro para um pistoleiro matar o marido. Como prova de sua morte, pediu a ele que trouxesse uma de suas orelhas, o que aconteceu. O matador profissional também foi preso dias depois da confissão da mulher. Sobre “Ambrósia”, nada mais se ouviu falar, mas contavam moradores de Ribeirão Pires que, depois da morte do lavrador, a égua relinchava noites a fio, até que um dia foi encontrada caída no pasto, sem vida.
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*Edward de Souza é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, Correio Metropolitano, Folha Metropolitana, Diário do Grande ABC e O Repórter, da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na Folha da Tarde, Gazeta Esportiva, Sucursal de "O Globo", Diário Popular e Notícias Populares, entre outros. Atuou nas Rádios: Difusora de Franca, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC, Diário do Grande ABC, Clube de Santo André, Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo - CBN e TV Globo de São Paulo. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.

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Milton Saldanha escreve resenha amanhã sobre a famosa Operação Condor, uma ação conjunta das ditaduras do Cone Sul, incluindo o Brasil, que matou secretamente centenas de opositores. Um casal de uruguaios, e seus dois filhos, foram salvos da morte graças ao trabalho da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, chefiada pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, que hoje mora em Brasília. O livro "O Sequestro dos Uruguaios" é uma história sensacional sobre os bastidores da série de reportagens da Veja que desvendou o caso, identificou e denunciou seus protagonistas. Além, ainda, de contar detalhes inéditos sobre a Condor. Esse trabalho deu a Luiz Cláudio o Prêmio Esso de Jornalismo (principal), o Prêmio Vladimir Herzog e o Prêmio Abril. Leiam amanhã neste blog a resenha (intencionalmente curtinha) sobre este livro imperdível.
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