segunda-feira, 12 de abril de 2010


A MARIA DO CARMO


Quando trabalhei em Brasilia, ainda na época da ditadura militar, tinha uma colega cearense chamada Maria do Carmo que namorava um dos chefões do Serviço de Censura, Coronel "Não Sei das Quantas".

A Do Carmo já era bem coroa e feia como o capeta, além de mancar da perna direita. O que tinha de feia, tinha de brava e ... coitado daquele que se tornava seu inimigo!

Certo dia ela convidou-me para um jantar em sua casa (em Brasília tinha muito disso), cujo prato seria o famoso "Baião de Dois", comida típica do Nordeste, feito por Severina, sua cozinheira. O tal do coronel da censura iria também (diga-se de passagem que a Do Carmo ganhava, em primeira mão, um exemplar de todos os discos que seriam ou não lançados, após o crivo da Censura).

Cheguei mais cedo para ouvir alguns dos "discos proibidos" e pude acompanhar a cozinheira na confecção do prato, anotando tudo, passo a passo.

A Do Carmo não tinha filhos e sua grande paixão era uma cadelinha (tão velhinha quanto a dona) chamada Champagne que soltava pelos e puns, pela casa toda. Estávamos sentados num sofá daqueles bem fundos e gordos, quando o "Coronel Censura" chegou. Ao levantar-me para cumprimentar o homem, pisei, com toda a força, sobre o quadril esquerdo da cadela e foi aquele escândalo: cadela latindo, Do Carmo gritando, coronel tossindo e eu gemendo, pela mordida que levei.

Ligamos para a médica da Champagne e fomos (eu e a Do Carmo) até a Clínica, aberta somente para atender a bichinha.

Resultado: saímos de lá depois da duas da matina com a cadela enfaixada da cintura para baixo (cachorro tem cintura?!) e a Do Carmo chorando e brava comigo pois, devido à idade avançada (da Champagne), a médica veterinária achava que os ossos não mais se soldariam.

Paguei a consulta, caríssima, e fiquei sem comer o "Baião de Dois" da Severina . A colega nunca mais conversou comigo, até o dia de sua morte, por síncope cardíaca após tomar um copo d'água gelada. Diz a lenda que quando o copo caiu ao chão, a cadela deu um longo uivo.

Depois disso, já fiz o tal prato várias vezes. É excelente, apesar de fazer-me lembrar daquela noite desastrosa. Vale a pena vocês experimentarem, portanto, anotem aí o famoso:

BAIÃO DE DOIS DA DO CARMO:

1 Kg de feijão-de-corda (na falta deste, experimente o feijão fradinho ou guandú); 1 kg de arroz; 1 kg de carne seca; 1 kg de carne de vaca (coxão mole ou músculo); 800 gramas de linguiça toscana ou calabreza; pimenta a gosto; cebola e cheiro verde picadinhos e 1 pimentão vermelho cortado em retalhos.

Cozinhe o feijão por 30 minutos, mais ou menos. Em outra panela, cozinhe a carne seca já dessalgada (para dessalgar,deixe-a de molho na água de um dia para o outro) juntamente com a carne de vaca, ambas cortadas em cubos pequenos, por 40 minutos. Afervente a linguiça, tire a casca e corte-a em cubos pequenos. Escorra bem todos os ingredientes. Numa panela grande, frite a cebola, o pimentão e o cheiro verde, juntando as carnes picadas, fritando mais um pouco. Em seguida, coloque o arroz lavado e escorrido. Junte o feijão já semi cozido (com tempero normal) com todo o caldo. Acrescente mais água fervente suficiente para cozinhar tudo. Prove o sal e deixe cozinhar em fogo baixo, de modo que fique um pouco úmido. Se necessário, coloque por debaixo da panela um "Chapex" para o Baião não grudar no fundo. É delicioso!

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*João Batista Gregório, 57, paulista de São João da Boa Vista, é cronista de mão cheia. Já publicou, em 2009, suas crônicas reunidas em Crenças e Desavenças e prepara novo livro, a ser lançado em breve. João Batista exercita seus dotes no Blog http://contoscurtosgrandesreceitas.blogspot.com/ onde cada crônica pitoresca finda com uma receita culinária especial.
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