CONTOS & CRÔNICAS DE PÁSCOA

AVATAR

Depois do milagre da ressurreição, a Páscoa, celebração de chocolate, rastilhos dos coelhos. Será que voltaram para comer os ramos que sobraram do domingo dedicado aos ramos santos? Ou trouxeram ovos recheados? Tempo de avatar, metamorfose, renascer, transfiguração, presença do extraordinário. A mulher acorda com as badaladas. Uma, duas, três, doze, apenas doze. Respira aliviada, teme que cheguem a treze e as bruxas saiam dos sombrios calabouços construídos dentro de imensa arca, onde permanecem encarceradas, sob a promessa de serem libertadas quando o dia tiver vinte e seis horas. Ela sempre capta os sons dos relógios: solenes os de Notre Dame; exatos os que chegam do Big Ben; melodiosos os da igreja; com atraso os da estação ferroviária.
Uma, duas, três, doze. Reconta no cuco que abre a janela, no badalo do velho relógio que pertenceu a Sherlock Holmes, ainda impressionada com a argúcia do famoso detetive que desvendou o mistério das horas roubadas, levadas no exato momento do ofício divino entre as sextas e as vésperas.
Doze, doze, doze. O quarto se enche de vibrações sonoras, sons simultâneos, elevação diferente. A mulher esfrega os olhos, levanta o travesseiro, recosta-se, tateia no criado, encontra o copo, despeja água da jarra de cristal, bebe vorazmente, ansiosa, grandes goles, grandes ruídos. Não sabe ao certo se é o meio-dia ou a meia-noite, o dia alumiado dividido ao meio, ou a noite feia, de tempestade, cortada em duas partes iguais.
Acende o abajur em forma de arca, peça muito velha, antiga, rara, cobiçada pelos colecionadores, antiquários e estudiosos do mundo todo. Móvel encimado por estranha inscrição, podendo-se ler claramente: “barca da salvação, pertencente a Noé”.
Naquele tempo, para desgosto de Javé, os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens. Ainda se observa no velho abajur em forma de arca o respiradouro colocado, a porta ao lado e a divisão em andares: inferior, segundo, terceiro.
Olha ao redor, a criança está quieta no ninho, boazinha, não incomoda, mesmo quando acordada tem medo de gritar, o choro chama a atenção do bicho-papão, do homem das bexigas, que aparece com o enorme saco membroso e sem fundo, onde enfiava e aprisionava os moleques barulhentos e desobedientes.
Sorri, apanha o pente-fino que pertenceu a medieval rainha da Inglaterra, instrumento de alisar, limpar e segurar os cabelos, utilizado desde tempos imemoriais, quando os primeiros piolhos apareceram e se espalharam.
Enfia o pente-fino na longa cabeleira prateada, sente arrepio, percebe que os cabelos se soltam do couro, grandes tufos, folhas mortas que se desprendem das árvores no inverno, o chão se cobre de feixes de cabelos amarelecidos.
Pelos vermelhos crescem com rapidez, substituem os prateados. Alisa com a palma, o ardor incomoda, provoca coceiras. Procura o espelho rococó, onde as damas de Luiz XV se enfeitavam para as festas de gala. Chega a tempo de observar a transformação: a pele se desfaz para surgir uma vistosa lagarta-de-fogo no instante em que o relógio marca a vigésima sexta hora, no décimo dia do seu quarto milésimo de vida.
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*Guido Fidelis é jornalista e escritor.
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Uma, duas, três, doze. Reconta no cuco que abre a janela, no badalo do velho relógio que pertenceu a Sherlock Holmes, ainda impressionada com a argúcia do famoso detetive que desvendou o mistério das horas roubadas, levadas no exato momento do ofício divino entre as sextas e as vésperas.
Doze, doze, doze. O quarto se enche de vibrações sonoras, sons simultâneos, elevação diferente. A mulher esfrega os olhos, levanta o travesseiro, recosta-se, tateia no criado, encontra o copo, despeja água da jarra de cristal, bebe vorazmente, ansiosa, grandes goles, grandes ruídos. Não sabe ao certo se é o meio-dia ou a meia-noite, o dia alumiado dividido ao meio, ou a noite feia, de tempestade, cortada em duas partes iguais.
Acende o abajur em forma de arca, peça muito velha, antiga, rara, cobiçada pelos colecionadores, antiquários e estudiosos do mundo todo. Móvel encimado por estranha inscrição, podendo-se ler claramente: “barca da salvação, pertencente a Noé”.
Naquele tempo, para desgosto de Javé, os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens. Ainda se observa no velho abajur em forma de arca o respiradouro colocado, a porta ao lado e a divisão em andares: inferior, segundo, terceiro.
Olha ao redor, a criança está quieta no ninho, boazinha, não incomoda, mesmo quando acordada tem medo de gritar, o choro chama a atenção do bicho-papão, do homem das bexigas, que aparece com o enorme saco membroso e sem fundo, onde enfiava e aprisionava os moleques barulhentos e desobedientes.
Sorri, apanha o pente-fino que pertenceu a medieval rainha da Inglaterra, instrumento de alisar, limpar e segurar os cabelos, utilizado desde tempos imemoriais, quando os primeiros piolhos apareceram e se espalharam.
Enfia o pente-fino na longa cabeleira prateada, sente arrepio, percebe que os cabelos se soltam do couro, grandes tufos, folhas mortas que se desprendem das árvores no inverno, o chão se cobre de feixes de cabelos amarelecidos.
Pelos vermelhos crescem com rapidez, substituem os prateados. Alisa com a palma, o ardor incomoda, provoca coceiras. Procura o espelho rococó, onde as damas de Luiz XV se enfeitavam para as festas de gala. Chega a tempo de observar a transformação: a pele se desfaz para surgir uma vistosa lagarta-de-fogo no instante em que o relógio marca a vigésima sexta hora, no décimo dia do seu quarto milésimo de vida.
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*Guido Fidelis é jornalista e escritor.
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