RESTOS E RASTROS
Folheava o livro antigo encontrado nos guardados do sótão, sob a luz de uma lâmpada que pendia do teto. Morava ali desde sempre, com boas lembranças daquele seu universo e as memórias de escola afloravam aos poucos em restos do que foi, um dia, a sua única verdade.
Os anos haviam passado rapidamente e seus planos foram abandonados, arquivados em gavetas de chaves esquecidas na sua mente. Novas experiências foram acrescentadas àquele rol primordial e ele se perguntava naquele momento quantas mais seria preciso acumular na vida e com qual objetivo, se voltaria ao pó mais cedo ou mais tarde, para descansar eternamente no sótão Divino. Mais uma página virada e novas lembranças...
O pai costumava ler sempre aquela história na hora de dormir! Como poderia ter desviado o foco daquela que era tão importante, daquela que o fazia viajar em pensamentos e imaginar coisas impossíveis, mas tão reais como as que aconteciam no livro?
“Alice no país das maravilhas” tinha descrições e desenhos imaginários, que despertaram nele o interesse pelo desconhecido, pela exploração do improvável, que sua inocência infantil garantia, absolutamente, que aconteceria.
“- É tarde! - É tarde!”, dizia o coelho no papel amarelado.
Até aquela presente data o bicho engravatado não se convencera que sempre estivera atrasado! Sempre olhando o relógio e correndo, premonitório à condição da atualidade.
“- É tarde!”
Nunca entendera o motivo de tanta pressa, mas com o tempo passando, a frase começava a fazer cada vez mais sentido.
Era tarde e ele tinha pressa de viver! Queria aproveitar o que a vida lhe tinha reservado, as regalias às quais raramente se permitia. Perder oportunidades? Nunca mais! Nunca mais se lançar ao fosso escuro e desconhecido de investidas não planejadas e cair em buracos sem fim ou situações insustentáveis!
A cada assopro para espantar o pó, novo episódio da história se revelava e, com ele, mais lembranças reviradas, a confirmarem os paralelos.
O coelho a se mover pelo conto e a vida estacionada pelos cantos!
Era a madrugada do dia de Páscoa. As crianças dormiam (sempre se referia aos filhos desta forma, mesmo adultos) e os ovos, que ele e a mulher esconderam pela casa, já aguardavam, ansiosos. Ninguém achava mais graça naquilo, mas os pais insistiam em incutir-lhes o subdesenvolvimento, deixando transparecer o que gostariam que acontecesse à prole, a estatização.
Mais uma folha virada do livro e finalmente se permitiria dormir. Foi aí que percebeu a falha no desenho! Voltou ao texto para confirmar o que não via. Faltava um detalhe, estava certo!
Com o canto dos olhos percebeu o movimento rápido.
Um remexer de papel denunciava uma presença e, em instantes, pôde ver os rastros deixados no chão sujo, apontando para a escada. Ao olhar para baixo ainda teve tempo de ver a fofa bola de pelos da cauda, conformado com o atraso que suas pernas velhas e seu movimentar lento lhe impingiam.
“- É tarde! - É tarde!”, pôde ouvir lá de baixo.
Desceu. O barulho de papel do embrulho dos ovos surpreendeu a mulher. Não era provável que ele tivesse feito aquilo!
“- Liberdade!”, disse ele de olhos alegres, lambendo o chocolate dos lábios e deliciado com a transgressão infantil, finalmente evidenciada!
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*Silvana Boni de Souza é farmacêutica bioquímica, especialista em Homeopatia. Escritora de contos e crônicas, desde 2000 participa de alguns projetos dinâmicos: http://www.vivasp.com/ que apóia desde o início; http://www.carmenrochacontos.pro.br/ que frequenta há três anos e http://www.deshortsnasiberia.com.br/ de sua autoria, desde 2008.
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Bom dia, amigos e amigas!
ResponderExcluirA farmacêutica-bioquímica e escritora de contos e crônicas Silvana Boni de Souza estreia no blog, na sequência de CONTOS & CRÔNICAS DE PÁSCOA, com um belíssimo conto, remexendo com emoções da infância, afloradas com a marcação do tempo: "- É tarde! É tarde!"
A intrincada construção do argumento demonstra a competência da autora em apropriar-se dos signos linguísticos e estilísticos e permite as mais variadas interpretações.
Na verdade, creio eu, para lembrar-nos que nunca é tarde para a transformação, para o renascimento e a reinvenção de nossa vida!
Seja bem-vinda, Silvana! Espero que seja apenas a primeira de uma série de intervenções!
Feliz Páscoa a todos!
Olá Silvana Boni
ResponderExcluirBom dia
Adorei seu conto. Pura poesia sobre o tempo e o espaço. Nossa imaginação sendo concretizada pelos nossos pensamentos.
Dos gostosos contos de fadas lidos em nossa infância e fábulas maravilhosas, recordados com nostalgia.
Parabéns
Paz. Muita Paz.
J. Morgado
Bom dia amigos (as) deste blog...
ResponderExcluirÉ com grata satisfação que postamos hoje um conto dessa amiga querida, Silvana Boni de Souza. Para que se entenda melhor seu texto bonito, é preciso saber de onde veio a inspiração para que Silvana escrevesse "Restos e Rastros". Confidencialmente, dias atrás, Silvana segredou-me que seu pai, com 91 anos a inspirou. Com 3 infartos, anêmico e com problemas renais, o pai de Silvana voltou aos tempos de criança e aprontou uma das boas. Pediu ao filho que o levasse a determinado lugar, possivelmente apenas para um passeio, mas, ocupado, o filho não atendeu o seu pedido. Não deu outra. O senhor Souza, como nos velhos tempos de criança, fugiu de casa e deixou todo mundo apavorado. Para onde teria ido, afinal? Telefonemas e correria, todos queriam encontrá-lo. Horas depois ele apareceu, conduzido por um jovem, a pé, como se nada tivesse acontecido. E surgiu esse texto que estão lendo hoje no blog. Uma homenagem a uma criança fujona de 91 anos de idade.
Silvana, o nosso muito obrigado pela colaboração nesta semana de contos e crônicas especias da Páscoa, gostei muito do seu conto e torço para que o Senhor Souza fique quietinho em casa, saboreando seu chocolate nesse domingo de Páscoa que se aproxima. Espero que você aprenda o caminho, Silvana e volte mais vezes. As portas estão abertas. Feliz Páscoa!
Um forte abraço a todos!
Edward de Souza
Gente! Obrigada pelo carinho com o qual fui recebida! Sou fã do Edward de Souza.
ResponderExcluirUm abraço paulistano da Silvana
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi Silvana, que maravilha seu conto. Depois que li fiquei pensando de onde teria vindo sua inspiração. E fiquei sabendo agora, através das explicações dadas acima pelo Edward, de quem, como vc, também sou fã. O Edward, Silvana, além, de brilhante jornalista é um gentleman. Voltando ao seu conto, acabei achando engraçada a fuga de seu pai, principalmente porque tudo terminou bem, mas imagino o desespero que deve ter dado em vcs, não? Fique de olho nele, com a chegada da Páscoa, vai que ele resolve buscar uns ovos de chocolates no armazém da esquina e some (rssssssss...). Brincadeirinha. Peço a Deus que dê muito tempo de vida a ele. É uma coisa linda a gente poder dizer que tem pai e com essa idade. Parabéns pelo texto brilhante, Silvana e volte mais vezes, por favor, você escreve muitíssimo bem.
ResponderExcluirBjos e boa Páscoa!
Tatiana - Metodista - SBC.
Belíssimo relato sobre as estrepolias que seu papai aprontou, Silvana. Li em seu currículo que vc escreve contos e crônicas faz algum tempo, não? E escreve muito bem. Já visitei certa vez o site do Vivasp, onde li muitos relatos sobre São Paulo de antigamente. Creio que não encontrei seu nome por lá. Mas, assim que tiver um tempinho vou visitar seu blog para ler seus textos. A amostra de hoje é de primeiríssima qualidade. Parabéns, beijinhos em seu papai e que ele seja muito feliz e não suma mais de casa...
ResponderExcluirBeijinhos, Silvana, boa Páscoa a vc e família, seja bem vinda ao nosso blog. Viu? Nosso blog... Somos de casa faz muito tempo e já até assumimos esse espaço, com a permissão do Edward e da Nivia.
Gabriela - Cásper Líbero - SP.
Silvana.
ResponderExcluirSe você formula em homeopatia tão caprichosamente as prescrições daquelas pequenas bolinhas como elabora textos, podem ficar tranquilos seus pacientes.
Lá no espaço da Nivia, mandei um recado para as duas estreelas de hoje.Abraço Garcia Netto
Silvana, fiquei encantada com seu texto. Muito bom ler esse seu conto. Só não deve ter sido agradável correr atrás do papai, não (rssssssssss). Onde já se viu isso! Um moleque fujão de 91 anos...
ResponderExcluirEnvie um beijão ao seu papi, Silvana! Uma Feliz Páscoa pra todos vocês e volte com mais contos no blog, vou esperar!
Andressa - Cásper Líbero - SP.
Boa tarde, Silvana Boni!
ResponderExcluirCom alegria lhe desejo as boas vindas a esse nosso espaço. Acabei de ler seu conto que me agradou sobremaneira. Você escreve muito bem, meus cumprimentos. Bom saber que mais uma grande escritora se une a essas "feras" do blog do Edward. Seja bem vinda!
Abraços,
Miguel Falamansa - Botucatu - SP
Olá Silvana,tudo bem?
ResponderExcluirSeja muito bem vinda nesse espaço,você é uma pessoa privilegiada,pois este espaço só conta com feras de primeiro time.
Amei seu conto,muito sensível, a carinha de uma criança.
Espero que esta estréia seja apenas o início de muitas crônicas e contos.
Parabénssssssssssssssssss.
ANA CÉLIA DE FREITAS.
Boa noite, Silvana...
ResponderExcluirEstive agora comentando o conto da Nivia, muito bonito, como o seu. Nivia mostra sua sensibilidade com seu coelhinho de estimação e você um grande amor pelo papai fujão. Que gracinha Silvana, seu papai é agora uma criança com 91 aninhos de idade. E quer aprontar sempre, experimente dar a ele um ovo de chocolate pra ver, vai se lambuzar todo. Sabe, Silvana, estive por várias vezes durante o dia tentando cumprimentá-la pelo lindo conto de hoje, mas sempre surgia um aviso de que o sistema de segurança do blog estava com problemas e eu perdia tudo que escrevia. Mas sou insistente e confesso-lhe que me sinto uma privilegiada em ler o conto que escreveu. Continue a nos alegrar com outros, por favor!
Bjos e uma boa Páscoa a você e família. Um beijão para o fujão!
Liliana Diniz - Santo André - SP.
Ôi Silvana, vc nem vai acreditar, mas lendo seu conto, julguei que um velho coelho perdido no sótão ganhou vida, acredita? Depois de ler os comentários e as explicações do Edward, voltei a ler o conto, desta feita imaginando seu papai em ação, escapando de casa como uma criança e deixando todos vocês preocupadíssimos. Pura criatividade de grandes escritores. Você me encantou com seu conto, Silvana.
ResponderExcluirFeliz Páscoa, parabéns!
Priscila - Metodista - SBC
Querida Silvana, maravilhoso seu conto. Que bom saber que vc se junta a esse grupo maravilhoso de grandes escritores...
ResponderExcluirBj
Daniela - Rio de Janeiro
Lindo, fantástico, adorei esse conto.
ResponderExcluirMaria Aparecida – metodista - SBC
Muito bom o seu jeitinho especial de escrever.
ResponderExcluirPassei uns momentos felizes aqui hoje.
Carmem Lucia - Cásper Líbero - SP.
A vida é uma grande rotina que nos transforma em prisioneiros dela.
ResponderExcluirAo entrar nesse blog a convite de um amigo, eu fugi por alguns momentos desse ritual metódico.
Parabéns Silvana Boni de Souza, você deve ser uma pessoa agradável, seus escritos diz isso.
Luma Pessoni – S.P.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá Silvana, muito lindo seu texto postado no blog do Edward. Como é o primeiro nome do seu pai? Fiquei curiosa para saber mais sobre o "moleque de 91 anos". Tenho um vovô que faz 90 anos o mês que vem, em maio, eu o adoro. Faz estrepolias como o seu papai, mas são lindos e muito queridos por todos nós, não é verdade?
ResponderExcluirEspero que volte com mais conto e crônicas...
Beijos e uma linda Páscoa a vc e família!
Ana Rita - Unifran - Franca - SP.